"À parte disso, tenho em mim todos os sonhos do mundo."

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Vale a pena...

Fernando já deixou de ouvir as palavras, não dorme, mas saiu dali a pensar. Tudo por causa de uma palavra. A palavra é "sinédoque" e a boca torce-se ao pronunciá-la. Fernando disse-a algumas vezes baixinho e pensa agora na definição, "Figura de estilo que consiste em tomar a parte pelo todo ou o todo pela parta; o género pela espécie ou a espécie pelo género, etc.". Diverte-o esta definição porque parece aplicar-se a todas as palavras. Depois pensa no et caetera e começa a esticá-lo, "Um verbo por uma vida, um gesto por um ser, palavras por um pensar". Na frase "O professor é monótono", Fernando encontra três sinédoques e uma tristeza muito grande.
        Fernando passou o resto do dia a encontrar sinédoques para onde quer que olhasse. "Como toda a gente", pensou. "A vida é dura", "Um homem não é de ferro", "Deus é grande". Mas há quem não tenha uma vida dura e seja de ferro e tenha um deus pequenino. É gente que testa a regra ou então que anda por aí calando e faz como vê fazer. Se um dia alguém se levantar no eléctrico e disser que é feliz, provavelmente será linchado, talvez até ignorado. Porque é que ninguém é feliz nos eléctricos?
        As pessoas gostam de usar palavras que não são de ninguém. Todos os dias há milhões de sentimentos, de desejos, de opiniões expressas com palavras forasteiras. Quantas vezes serão os sentimentos a adequar-se às palavras, e não o contrário? Seremos tão parecido que não precisemos de encontrar as palavras que nos sirvam?
        Os artistas têm muitos nomes para diferentes azuis, os esquimós têm muitas palavras para diferentes tipos de gelo. Os apaixonados deveriam ter também muitas palavras para "amor": o amor da manhã, o amor do fim, o amor do passado, o amor possível. Todos deveríamos ter diferentes palavras para "eu": o eu que eu sinto, o eu que tu vês, o eu que eu não sou.        A parte pelo todo ou o todo pela parte. Andamos nisso, a praticar sinédoques como se falássemos ou quiséssemos bem a alguém, tomando a parte pelo todo que não haveremos nunca de conhecer. Assim, conseguimos dormir muitas noites enquanto dizemos para dentro "está tudo bem, não penses mais nisso". Isso em que não pensamos é o resto do todo. São as horas que não vivemos, as palavras que não nos são ditas, as espinhas que pomos de lado tão gulosos da carne. Ninguém apanharia um eléctrico sem sinédoques, ninguém é tão forte.
Nuno Camarneiro em "No Meu Peito Não Cabem Pássaros

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